domingo, 18 de dezembro de 2011

as crueldades de cada dia

sou advogada e atuo na área penal. sou advogada e meu papel não se limita à defesa dos direitos de outros. antes disso persigo a justiça. sou contra o arbítrio, o pré-julgamento, contra qualquer tipo de execução sumária. respeito a constituição e o estado democrático de direito. luto por isso e vou morrer lutando.

mas sou humana, antes de tudo. e também me enojo. e também me revolto contra qualquer tipo de barbárie. e não me refiro ao crime comum e com o qual eu, como advogada, convivo em meu dia a dia profissional. embora todo tipo de crime, o patrimonial, especialmente, seja responsável pela crescente intranquilidade social, tenho convicção de que, para crime assim, existe tipificação, condenação e pena adequada. existe justiça.

o que me dá ânsia, me provoca náuseas, é a barbárie do homem comum, do homem de bem (?), é a barbárie subterrânea, entre quatro paredes, e inviolável. (sim, porque na minha casa ninguém entra, ninguém sabe o que faço, nem do que sou capaz de fazer). e sob o sagrado manto da inviolabilidade, sigo fazendo o que quero, sigo espancando e matando meu cão, agredindo meu filho, desrespeitado meus pais idosos, acessando a internet e difamando pessoas. e, lá fora, sou mulher e homem de bem, carrego meus apetrechos, minha bíblia, mantenho meu nome limpo, sou funcionário exemplar. sou do bem.

e. lá fora, existe alguém que sabe de mim, que coleciona meus atos de crueldade através de uma câmera, mas que prefere brincar e acha bonito publicar meus atos em redes sociais, e acha legal ver os contadores de acessos rodarem enlouquecidamente. existe alguém sim, sem nenhum compromisso com a vida alheia, sem nenhuma noção entre certo e errado.

e existimos nós, homens e mulheres de bem, que seguimos tranquilamente nossas vidas, sem nos darmos conta de que, ao lado, bem próximas, criaturas sofrem entre quatro invioláveis paredes, e que nossos ouvidos somente escutarão o que nos dará prazer e nossos olhos somente enxergarão aquilo que não incomodará.

existimos e isso me dá náuseas.

mariza lourenço

[imagem Digital Vision]

domingo, 4 de dezembro de 2011

acerca de futebol... *;)

Vai que é sua, papai!


Quando o irmão nasceu penduraram um par de chuteiras e uma camisa do Palmeiras na porta do quarto. A menina ficou preocupada. O Palmeiras era o time do coração do pai e isso só podia significar uma coisa: ela acabara de perder o trono para um gorducho feio, careca e desdentado. Até chaveiros com as cores do time foram distribuídos na maternidade. Enquanto, no berço, o gorducho arrotava e dormia o sono dos inocentes, um papai orgulhoso traçava planos para a primeira visita de ambos ao Parque Antártica. Que fossem felizes para sempre!, pensou a menina, com vontade de arrumar as malas.


A vida, assim como o futebol, revelou-se, nos anos seguintes, uma bela "caixinha de surpresas". Para decepção do pai, o bebê cresceu caído de amores por outro time e passava os dias cantando estridentemente: Clube Atlético Mineiro, galo forte, vingador!. Não restou, então, ao pai, outra saída senão conformar-se com a companhia da filha para assistir às partidas de futebol. A menina, sempre muito quietinha, sentava-se no sofá ao lado do pai e, de vez em quando, perguntava:


- Pai, o que é zaga? Tava impedido por quê, pai? Foi falta, pai? Pai, onde fica a grande área? E a pequena?


A maioria das perguntas, ela as fazia para merecer um tico de atenção que fosse daquele homem sério. Durante toda a vida sentou-se ao lado dele para, juntos, assistirem ao futebol e, durante toda a vida, repetiu as mesmas perguntas bobas. Nunca fez questão de saber se fulano estava na linha de impedimento no momento do gol, porque se o pai lhe dizia que não estava ela acreditava.


Trinta anos depois, a cena, como num filme, se repetia, só que desta vez com sabor de antecipada saudade. O pai estava morrendo e o time do coração nunca estivera tão mal colocado num campeonato brasileiro.


Ela falou baixinho:


- Ih, pai, este ano nosso time... Sei não.


Ele a olhou daquele jeito condescendente de quem diz "você continua não entendendo nada de futebol, mas eu te amo..."


Com um gesto de mão pediu que a menina desligasse a TV. A partida ainda não havia terminado, mas ele já estava na prorrogação, com o tempo esgotado e cansado de jogar.


Morreu no dia seguinte, desconhecendo se o time levaria, ou não, o título aquele ano. Não levou.


E a menina?


A menina quase morreu de dor, mas aprendeu com o tempo que, independente do lugar para onde tenha ido o companheirão, seu pai, como se diz no jargão futebolístico, já entrou marcando gol de placa. Grande jogador que havia sido nos campos da vida.


mariza lourenço
[imagem Ekaterina Nosenko]